Ziraldo, um Mineiro
Em 6 de abril de 2024, Ziraldo deixou-nos. Patrimônio artístico-cultural brasileiro, Ziraldo foi cartunista, pintor, escritor, dramaturgo, apresentador, jornalista… e mineiro.
Philippe Oliveira de Almeida**
O dileto filho de Caratinga (e ex-aluno da Faculdade de Direito da UFMG) notabilizou-se em dois campos nos quais o Brasil é referência internacional: a literatura infanto-juvenil (ombreando-se a mestres como Monteiro Lobato, Ruth Rocha, Ana Maria Machado e Flávia Martins de Carvalho) e a charge (ao lado de gênios do naipe de Henfil, Laerte, Angeli e Glauco).
Em seus trabalhos, a mineiridade é nuclear – o Menino Maluquinho é um menino mineirinho, tal como o Menino no Espelho de Fernando Sabino (outro clássico voltado a crianças de todas as idades, dos 8 aos 80). O desenho das montanhas de Minas emoldura o quadro que, no curso das décadas, Ziraldo traçou com seu trabalho.
O legado de Ziraldo estimula-nos a pensar sobre o sentido da mineiridade, a nota distintiva que caracteriza aqueles que nascem com o aço das Alterosas no peito. Numa crônica de 1992, o escritor mineiro Otto Lara Rezende lançou a indagação: “Mineiridade existe? Ou é papo furado?”. Otto – que, noutra ocasião, afirmou que “o mineiro só é solidário no câncer”, inspirando Nelson Rodrigues a redigir o clássico Otto Lara Rezende ou Bonitinha, mas ordinária – chega à conclusão que a essência de Minas é um mistério: se ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicá-lo a quem me pede, não sei.
Alterando a resposta do insigne cronista, me arriscaria a dizer que a essência de Minas é o Mistério: Minas é a terra das confidências (e dos inconfidentes), dos acordos de bastidores e dos arranjos costurados em casarões coloniais.
Na definição do poeta itabirano Carlos Drummond de Andrade: as Gerais são “galeria vertical varando o ferro/ para chegar ninguém sabe onde”. O mineiro é, antes de tudo, um bizantino.
Já se tornou clichê do clichê dizer que “Minas são muitas”: há a Minas baiana de Montes Claros, a Minas capixaba de Mantena, a Minas carioca de Juiz de Fora, a Minas paulista de Pouso Alegre, a Minas goiana de Paracatu, a Minas estadunidense de Governador Valadares, a Minas marciana de Varginha e, até mesmo, a Minas etérea de São Thomé das Letras.
Vale observar que Marte Um – um dos melhores filmes brasileiros recentes, dirigido pelo belo-horizontino Gabriel Martins – trata, precisamente, da fronteira entre Contagem e o espaço sideral, a partir das esperanças de um garoto que quer tornar-se astronauta.
Minas faz fronteira com diversas regiões distintas (deste plano astral e de outros) – daí que o mineiro seja fronteiriço, borderline, dono de uma “consciência mestiça” (na acepção da filósofa chicana Gloria Anzaldúa).
Não é de se estranhar que, nas Alterosas, tenham nascido oito presidentes da república – sem contar Itamar Franco, o mais mineiro dos mineiros, que, embora tenha crescido em Juiz de Fora, nasceu em alto-mar (o que não deixa de ser poético…).
Surgida como pouso para bandeirantes em viagem rumo ao Oeste, Minas é a encruzilhada (abençoada por Hécate e Exu) entre as mais diversas regiões do País: por isso, representa, como muitos analistas já destacaram, um Estado-síntese, que condensa, em si, as principais expectativas e angústias que mobilizam o Brasil.
Acostumado a ser o “fiel da balança” incumbido de equilibrar as mais diversas demandas sociais pátrias, o mineiro é, por natureza, um radical de centro: para além das paixões partidárias, sempre militará pela preservação do espaço democrático no qual paixões ideológicas são debatidas e negociadas. Eis o motivo de o mineiro ter uma “irresistível vocação para a vida pública”, como reza o Manifesto dos Mineiros (carta redigida por intelectuais em 1943, contra a ditadura de Vargas).
O romancista francês Georges Bernanos – que, fugindo da Segunda Guerra Mundial, fez da fazenda de Cruz das Almas, em Barbacena, a sua casa – admirava a alegria das crianças, antídoto contra a (em suas palavras) “incurável frivolidade das pessoas sérias”.
O mineiro, apesar – ou talvez, em virtude – da melancolia das montanhas, procura preservar a gaiatice infantil: eventos formais, austeros (de batizados a casamentos, de formaturas a velórios) são teatro, e mal e mal disfarçam o fato de que toda interação humana é lúdica.
Pompas e rapapés – que mineiros apreciam – valem pela graça cênica, não pelo verniz de seriedade. Mineiros são meninos maluquinhos, que, como Ziraldo, sabem que “um adulto é uma criança fora de uso”. O tempero que faz do sotaque mineiro o mais charmoso do País… é o sarcasmo, o deboche, a jocosidade.
O mineiro é um arquiteto de silêncios. O sentido de suas frases está, não nas palavras, mas nos espaços vazios entre elas. O dito é o muro que, a um só tempo, esconde e evidencia o não-dito. Brigamos, nos reconciliamos e brigamos de novo sem que nenhuma palavra precise ser dita – nos comunicamos, não por ondas sonoras, mas por ondas eletromagnéticas. Já declaramos guerras por meio de silêncios, e do mesmo modo já celebramos acordos de paz.
Os olhos dos mineiros são mais eloquentes que a língua – expressam não só o espectro básico dos sentimentos humanos (amor, ódio, frustração etc.), mas também emoções para as quais não temos sequer palavras. No fundo, todo mineiro – seja ele católico, protestante, ateu… – é um místico (um teólogo apofático): sabe que o discurso (o logos apodítico dos filósofos) jamais vai esgotar a Verdade, inefável.
Minas é a pátria da conspiração e das meias-palavras, do “dito pelo não dito”. Preferimos a meia-luz ao meio-dia, a sugestão à afirmação enfática. Consideramos a sinceridade deselegante – a falta de sutileza é pecado venal. O mineiro é visto como conservador e tradicionalista, mas isso porque sabe que a transgressão perde o sabor, sem a norma. Se eu verbalizo e normalizo o pecado, vai-se embora a graça.
Levamos a sério o adágio de La Rochefoucauld: “a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude”. Celebramos o protocolo, não por seu conteúdo moral, mas pela beleza do ritual – vemos com sarcasmo qualquer um que siga regras senão pelas aparências, pelo valor estético. O mineiro é um ironista – aprecia tudo ironicamente, rindo de quem toma as próprias posições demasiado a sério.
Não seguimos nada ao pé da letra: Minas é a terra de católicos maçons, neopentecostais comunistas etc. Daí a fama de conciliar o inconciliável. Sabemos que papéis sociais não passam disso: papéis. Se cuidamos tanto de nossas imagens públicas (da etiqueta), é porque acreditamos que não passa de jogo, performance, arte. Para além da esfera do visível, há a teia oculta do real.
Pela memória de Ziraldo, peço um minuto de silêncio – mas não um silêncio qualquer: o silêncio a um só tempo solene e zombeteiro das Alterosas.
(**) Philippe Oliveira de Almeida é professor na Faculdade de Direito da UFRJ
09-04-2024 às 09h:22